Recupero aqui um excerto da escritora Herta Müller, de um livro que li há um ano, e que acompanha o desdém de Rui Nunes por tudo quanto na língua (em nome da língua, com a língua) se torna um símbolo de poder (os valores da pátria, o caráter sagrado da língua, o pressuposto respeito que devemos ter com a língua, etc...). Aqui vai:
«Muitos escritores alemães são embalados pela crença de que a língua materna, se fosse caso disso, lhes substituiria tudo. Apesar de ainda não terem chegado a este ponto, dizem: LÍNGUA É PÁTRIA. Os autores para quem a pátria está ao dispor sem questionamento, a quem nada acontece em casa que lhes ponha a vida em perigo, irritam-me com esta afirmação. Quem, como alemão, diz LÍNGUA É PÁTRIA, tem a obrigação de estabelecer contacto com aqueles que a cunharam. E quem a cunhou foram os emigrantes, que tinham escapado aos assassinos a mando de Hitler. Atribuída a eles, a afirmação LÍNGUA É PÁTRIA encolhe ao ponto de se tornar um autoconvencimento oco. Significa apenas: "Ainda existo." LÍNGUA É PÁTRIA era para os emigrantes, em terras de estranheza e desespero, a persistência colocada na própria boca. As pessoas cuja pátria as deixa partir e voltar à vontade não deviam gastar esta frase. Têm chão firme debaixo dos pés. Saída da boca delas, a frase encobre todas as perdas dos refugiados. Sugere que os emigrantes podem abstrair-se da destruição da existência, da solidão e da identidade para sempre fracturada porque a língua materna dentro das cabeças é capaz de fazer frente a tudo, como pátria portátil que é. Levar a língua consigo não seria uma possibilidade, mas sim uma obrigação. E só quando morressem é que ela não estaria presente — mas o que é que isso tem que ver com pátria!
Não gosto da palavra "pátria" [...].»
Não gosto da palavra "pátria" [...].»
— Herta Müller, in O Rei Faz Vénia e Mata (trad. Helena Topa)
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