LIXO-LIMPO

"A memória dos sulcos anuncia, não o vazio, mas corpos a esmo, montes de coisas esquecidas num barracão: um ancinho a enferrujar, a lâmina de uma enxada, uma foice roída pelo uso...
O plástico, esse, não deixa sulcos. Um computador, um telemóvel, uma impressora não envelhecem, estragam-se. Estão a desaparecer todas as coisas que envelhecem, substituídas por coisas que se estragam:

[...]

Escrever nos pequenos desperdícios do tempo. Hoje, porém, há os vigilantes do lixo. Vasculham e separam. Até não haver. Há quem morra de fome rodeado de caixotes hermeticamente abertos. Acabemos com a pobreza no mundo: grita o bispo. Reciclemos. Palavra a palavra encontrar-se-á Deus: uma frase completa. Retribuamos. Palavra a palavra das coisas que Deus não criou. Diz o que lhe vem à cabeça. Contradiz-se. Eu sou a contradição e a vida. Quando essas coisas se estragam, surge um lixo não reciclável. Não se transformará em estrume, não germinarão nele as sementes, até os lagartos não gostarão de apanhar sol na superfície lisa dos seus restos. O lixo nunca está acabado. Dele sempre remanescerá outro lixo. Mais subtil. E assim, de lixo em lixo, se vai tornando intensamente limpo. Um lixo como deve ser."

(Rui Nunes, O Anjo Camponês, Relógio D'Água, 2020, pp. 56 e 82-83)

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(Fotografia: Diogo Martins)


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